Memória e envelhecimento

Memória e envelhecimento
Memória e envelhecimento

Como acontece o envelhecimento cerebral?

Em termos biológicos, o volume do cérebro diminui cerca de 7cm3 por ano após os 65 anos. Isso se deve tanto à perda neuronal que ocorre pela morte celular como pela diminuição das ramificações das terminações nervosas, e diminuição de sinapses. Além disso, há múltiplas alterações nas enzimas cerebrais, receptores e neurotransmissores que ocorrem com a idade. A disponibilidade de acetilcolina e dopamina, por exemplo, diminuem.

Estudos de neuroimagem mostram que o cérebro de uma pessoa mais velha, para muitas tarefas, parece trabalhar mais do que o de um jovem, recrutando mais neurônios e com maior gasto energético. Isso demonstra uma certa vulnerabilidade do cérebro idoso, uma vez que a quantidade de áreas cerebrais ativadas para uma determinada tarefa pode representar compensações feitas para manter a função cognitiva com a idade.

Em termos clínicos, o envelhecimento considerado normal é caracterizado por um declínio progressivo de grande parte das funções cognitivas. Especialmente as funções associadas à memória de trabalho (atividade de armazenamento temporário e de utilização de informação ligada especificamente à realização de uma tarefa), memória episódica (memória de eventos autobiográficos) e velocidade de processamento. Um outro domínio cognitivo que se modifica com a idade é a função executiva, a qual diminui com a idade e mais drasticamente após os 70 anos. A função executiva é fundamental para o envolvimento em um comportamento intencional, independente e auto conservador. Uma função executiva preservada permite, por exemplo, que uma pessoa mais velha administre com sucesso suas próprias doenças médicas.

Contudo, ao passo que algumas funções declinam, outras melhoram. Habilidades e conhecimentos que são super aprendidos, bem praticados e familiares, como vocabulário ou conhecimento geral, permanecem estáveis ou melhoram até a sétima década. A capacidade de reconhecer objetos e faces familiares, bem como manter a percepção visual adequada dos objetos, permanece estável ao longo da vida. Em suma, indivíduos normais possivelmente ficam melhores naquelas funções que sempre desempenharam ao longo da vida.

Portanto o envelhecimento cognitivo é um fenômeno complexo, com grande variação entre um indivíduo e outro. Muitas vezes frente a uma queixa de memória, há existência de um período no qual haverá incerteza sobre o fato de estarmos diante de um processo natural de envelhecimento e ou das fases iniciais de um quadro demencial. Alguns indivíduos que comprovadamente não têm doença cerebral, apresentam um declínio cognitivo lento que evolui ao longo dos anos. Outros mantêm estabilidade consistente em suas funções cognitivas, podendo inclusive apresentar desempenho progressivamente melhor.

Um indivíduo idoso, independente da idade, com um envelhecimento bem-sucedido, permaneceria apto a participar da sociedade, no local de trabalho, ou funções de casa. Portanto, o surgimento de qualquer sintoma ou queixa relacionado a memória, percebido pelo próprio paciente ou por familiares deve ser avaliado detalhadamente por um médico especialista. Uma boa história clínica, uma avaliação cognitiva formal e alguns exames laboratoriais e de imagem auxiliam na identificação precoce de síndromes demências ou ainda de condições clínicas reversíveis que podem cursar com alteração da memória.

Existem fatores que favorecem um melhor envelhecimento cognitivo?

Sabe-se hoje que indivíduos com o mesmo grau de doença cerebral, podem apresentar manifestações clínicas muito diferentes.  Ou ainda, alterações neuropatológicas comumente associadas às demências podem ser encontradas nos cérebros de pessoas sem demência. Fatores que sabidamente podem influenciar na ocorrência e intensidade de problemas de memória são:

  • Herança genética
  • Doenças cardiovasculares (diabetes, hipertensão, alteração do colesterol)
  • Sintomas depressivos
  • Déficit auditivo/ visual
  • Exposição a substâncias tóxicas (como por exemplo o álcool, tabagismo)
  • Uso de algumas medicações (principalmente com ação no sistema nervoso)
  • Fatores relacionados ao estilo de vida (construção da reserva cognitiva)

Indivíduos com maior reserva cognitiva seriam capazes de tolerar uma quantidade maior de agressões neuropatológicas antes de desenvolver sintomas. Ou seja, na presença de uma doença neurodegenerativa progressiva a síndrome demencial se manifestaria mais tardiamente, apenas diante de uma carga cumulativa maior de lesões neuropatológicas.

O envolvimento em atividades intelectualmente estimulantes, físicas e sociais têm sido associados a uma maior reserva cognitiva e menor risco de comprometimento cognitivo. Atividades consideradas com efeitos protetores para a cognição: leitura, grupos de discussão, uso do computador, participação em jogos de cartas e tabuleiro, resolução de quebra-cabeças, interpretação de instrumentos musicais e aprendizado de uma segunda língua. Além disso, também beneficiam um melhor desfecho cognitivo: níveis mais altos de educação formal, complexidade ocupacional, coeficiente de inteligência (QI), participação em atividades de lazer, engajamento social.

Portanto, ter tido uma vida saudável, com bom controle de doenças crônicas, boa alimentação, prática regular de atividade física e engajamento em atividades sociais e que sejam cognitivamente estimulantes favorecem um bom envelhecimento cognitivo. Apesar de não serem uma garantia contra o surgimento de uma síndrome demencial, certamente são hábitos modificáveis que podem atenuar e postergar o surgimento de sintomas.

Quando suspeitar de um quadro demencial inicial?

Um dos principais sinais de alarme em relação aos sintomas de memória é a constância. Uma pessoa idosa que ocasionalmente perde um objeto, preenche um cheque de maneira errada, faz confusão pontual com algum compromisso ou data pode apenas representar alterações compatíveis com um envelhecimento cognitivo normal. Por outro lado, erros constantes com a administração das finanças, confusões diárias com as medicações, dificuldade repetida para fazer uma tarefa habitual (como preparar um café ou cozinhar uma receita conhecida) podem indicar um processo demencial inicial.

A demência de Alzheimer é caracteristicamente uma doença de idade mais avançada, com um risco estimado ao longo da vida de quase 1 em 5 para as mulheres e 1 em 10 para os homens. A incidência e a prevalência aumentam exponencialmente com a idade, essencialmente duplicando a chance de aparecer a cada 5 anos após os 65 anos de idade. A característica clínica mais marcante e precoce é o déficit de memória recente, resultando por exemplo em dificuldade para lembrar-se de um filme ou noticiário visto recentemente ou fazer repetidamente a mesma pergunta. Como a evolução da doença, que em geral é lenta e progressiva, outras alterações cognitivas podem aparecer, como dificuldade para se localizar em um ambiente conhecido, dificuldade para lembrar-se de palavras ou nomes de objetos, mal julgamento de situações, assim como alterações de comportamento (agressividade, labilidade emocional, confabulações, entre outros).

Apesar da doença de Alzheimer ser a forma mais comum, existem outros tipos de demências. Em especial no início dos sintomas, cada tipo de síndrome demencial se manifesta de uma forma mais característica, o que ajuda na definição do diagnóstico. Ainda, existem condições clínicas que mimetizam os quadros demenciais e que, se corrigidas precocemente, são reversíveis, como é o caso de alterações da função tireoidiana, síndromes depressivas, deficiências de vitaminas, algumas infecções do sistema nervoso central, entre outras. 

Portanto é fundamental que o geriatra ou clínico tenha conhecimento de eventuais sintomas que estejam acontecendo para que um diagnóstico assertivo seja feito o quanto antes. Apesar de infelizmente não existirem medicações curativas, que mudam o curso das síndromes demenciais, as medicações disponíveis atualmente atenuam a velocidade do declínio cognitivo. Consequentemente, se diagnosticado e iniciado o tratamento precocemente, maior a chance do paciente permanecer em uma fase inicial com sintomas leves e preservar por um tempo maior sua independência e autonomia. 

 

 

Dra Isabella Figaro Gattas Vernaglia (CRM-SP 141251) é graduada em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de SP, Doutura em Ciências Médicas pela FMUSP com Título em Geriatria pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e parceira da Cuidare Morumbi.